Lucila Nogueira




Lucila Nogueira (Rio de Janeiro, 30 de março de 1950) é uma escritora brasileira. De origem luso-galega, tem vinte livros de poesia publicados e cinco de ensaio, além de muitos artigos em revistas impressas e online.
Lucila Nogueira.Viveu no Rio de Janeiro com intervalos de permanência entre essa cidade e o Recife.
É também tradutora, editora e contista, além de professora de literatura brasileira, literatura portuguesa e teoria literária na graduação do curso de letras da Universidade Federal de Pernambuco; na pós-graduação desenvolve as linhas de literatura comparada, literatura-sociedade-e memória, imaginários culturais , lecionando disciplinas como teoria da poesia, ideologia e literatura, literaturas de expressão portuguesa do século XX e literatura hispanoamericana.
Foi a primeira brasileira a participar do festival internacional de Poesia de Medellin, em sua XVI versão, considerado o maior festival do mundo em público e participantes.Representou igualmente o Brasil no XII Festival Internacional de Poesia de La Habana , no XV Encuentro de Mujeres Poetas en el País de las Nubes, realizado em Oaxaca, México, onde desenvolveu sua Oficina de Poesia e Conto para crianças e adolescentes das comunidades indígenasmexicanas - todos os eventos em 2007.
Está incluída na Antologia de Poetas Brasileños editada em Madrid em 2007 pela Huerga y Fierro Editores e na Anthologie Poétique Nantes Recife, édition de la Maison de la Poésie de Nantes com a prefeitura do Recife, no mesmo ano.
Organiza edições , congressos e eventos culturais. Mantém há dez anos a Oficina Lucila Nogueira de Poesia e Conto, desenvolvida em módulos em várias instituições.
Ocupa a Cadeira 33 da Academia Pernambucana de Letras, eleita em março de 1992e é sócia-correspondente da Academia Brasileira de Filologia, sediada no Rio de Janeiro.


Fonte: biografia (Poesiaspoemas)
             poemas  (Blog do Noblat/ A poesia do Brasil)







Mas não demores tanto
Lucila Nogueira




O corpo - dizem - já não será mais o mesmo
em seu reflexo exterior,
mas alguma coisa se diga das cavernas fosforescentes
que navegam a fome do demônio
na hora do seu resplendor


Olha o meu corpo antigo na curva do chafariz
ou no leme do navio.
Eu sou um pássaro noturno perturbado.
Eu te ofereço os meus seios muito brancos
numa escada secreta do mar Cáspio.


Alguém falou de um modo descuidado
e as gárgulas de Notre Dame
contornaram os mamilos
como breves e clandestinos fogo-fátuos.


O corpo - dizem - já não será o mesmo,
desesperadamente eu te desejo
enquanto navego rochas subterrâneas
à beira da consciência humana
e o racha da atmosfera interfere na faixa luminosa
bem no centro da tela da televisão que se quebrou.


Porque naquele tempo
o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente hindu
ele era como a voz rouca de Dioniso
fazendo soar as teclas do piano austríaco
abandonado na passarela vermelha
de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.


Saí pelo ancoradouro embriagada
arrastando candelabros escarlates
no rio de letreiros luminosos
enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios
ardendo sempre de tanto amor.


Todos eram demais e não sabiam
mas quando tu me pegaste forte
eu me surpreendi tímida
e até hoje estou fugindo entre palmeiras
pelas estradas líquidas do vinho e do neon.


Digo que continua urgente a ilusão desse momento
acometido de inenarráveis confissões.
Utopia presa na cartilagem úmida,
quando tua boca recobrir o seio
seremos então as duas outras faces
de uma mesma única possessão,
como uma estória colada na outra
enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância
que uma água subitamente morna quase apagou.


Como dizer, sem te estranhar: recusa-me
que a dama nua ao telefone pode estar no transe
a que tanto aspiras sob o vermelho das lanternas
enquanto a chuva cobre os telhados à beira-mar.
Tudo agora se tornou tão urgente
que dói a espera imemorial das bonecas
sobre a madeira escura
imóveis mas não inertes
a aguardar seu número de magia
quebrando a banalidade dos noticiários da televisão.


A blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia
assassinada nua em campo de concentração
esplêndido violinista, vamos enlouquecendo devagar.
A blusa de cetim verde deixa entrever
a parte morta da carne branca
sob a luz do globo fosforescente
girando sobre os dançarinos
amanhã invisíveis do bar Royal.


Fecha os olhos e pensa no que quiseres
enquanto as mãos e as bocas
cumprem roteiros de miragens desérticas,
enquanto eu toco novamente
o meu piano austríaco na calçada do cais
e o mar quase arrebenta as janelas dalinianas
do Armazém XIV.


Porque o espírito há-de ser sempre o mesmo
eu desafio a tua preferência
e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro
tem ainda um oceano de lantejoulas
refletindo a vibração da pele
que por alguns momentos a habitou.


Dragão gigante
língua demoníaca
união clandestina
avesso encantamento
abismo vulcânico
onde a partitura se desfez em notas a cobrir a pauta
que guia o violoncelista ao Palácio de Cristal.


Fecha os olhos e beija-me de modo frágil
porque tudo se tornou mais urgente
desde o Museu Serralves
e os desenhos rosa do mármore
revelam caminhos recifenses da pele emparedada
sonhando o êxtase da ressurreição.


O teu olhar tem o mesmo brilho de um atirador de facas
enquanto giro na roda sobre mim mesma
dramaticamente presa nas cordas
ao som de Tchaicovski na Abertura 1812.


O teu olhar é como um sino milenarmente gigante
rondando os patamares da Régua
até a calçada de Copacabana,
o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada
desde os coqueiros do Recife
até os verdes pinheiros galegos
que deram sombra ao romance dos meus bisavós.


Sei que hás de vir sob a neve enluarada
conduzindo lanterna no pescoço do cavalo branco
e me tomarás a galope em tua capa de veludo escuro
enquanto no circo abandonado
a trapezista continuará dormindo
completamente nua
na jaula dos leões.


Sei que hás de vir ferozmente enfeitiçado
nesse rapto anunciado para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro
e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços
até o sol secar as sete saias
tiradas ao som de sete violinos
durante as sete noites da encantação.


Mas não demores tanto.
Que amar é a arte
de se fazer presente
e tudo aquilo que precisamos
é de poesia
loucura e ênfase
no ato heróico de reabrir as portas
da carne mansa que se equivocou.


Que o corpo - dizem - já não será o mesmo
e o que era assédio pode retemperar-se em fuga
e até nós – dizem – não seremos os mesmos
no estranho instante de raio laser
em que chegar sem aviso o prazer da manhã.






Falarão meus poemas pelas ruas...
Lucila Nogueira



Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
e aqueles que sorriam pelas costas
recitarão meus versos sem os ler

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que fui um mar misterioso
onde quem navegou não esqueceu

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que era poesia e não loucura
meu jeito de sonhar todos vocês

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
perguntarão por que vivi tão pouco
sem dar-lhes tempo de me perceber

— e aqueles que sorriam pelas costas
 recitarão meus versos sem os ler






Véu de pirilampo
Lucila Nogueira





E eu coloquei meus óculos escuros
contra a mediocridade dos neons
contra a agressão das almas monstruosas
e a crueldade oculta nas manhãs
— na penumbra amnésica anteparo
o cotidiano fogo dos dragões.

E eu ajustei meus óculos escuros
mas vi gente comendo carne humana
crianças assaltando à mão armada
cheirando cola ou sendo trucidadas
enquanto os vaidosos declamavam
a sua dor tão dicionarizada.

E eu saio à rua de óculos escuros
porque me cega a cena da injustiça
porque a lei só legítima a força
descobriu a platéia o fundo falso
do palco onde encerrou-se o último ato
e se esqueceram de fechar o pano.

E eu uso sempre os óculos escuros
porque o mundo é uma faca nas pupilas
trapézio inteiro de arame farpado
sobre a rede de areia movediça
a pele triturada e sem aplausos
prossigo encantadora de serpentes
E eu saio à noite de óculos escuros
porque meu corpo acende nessa hora
meus óculos são véu de pirilampo
me resguardam de dentro para fora
escondem o meu sol subcutâneo
— são a nave em que chego até os homens.






Se ainda houver amor
Lucila Nogueira





Se inda houver amor eu me apresento.
E me entrego ao princípio do oceano.
E se me atinge a onda, úmida eu tremo
esquecida de insones desenganos.
E se inda houver amor eu me arrebento
feliz, atravessada de esperança
e mesmo lacerada inda assim tento
quebrar com meu amor todas as lanças.
E se inda houver amor terei alento
para aguentar o inútil desses anos
e não me matarei, sonhando com o tempo
em que me afogarei no seu encanto.
e se inda houver amor, ah, me consente
ser pasto de tua chama, astro medonho.
E se inda houver amor, eu simplesmente
apago esta ferida do meu sono.








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